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Primeiro de maio de 1994. Um domingo tão bonito que me animou
acordar mais cedo para lavar e polir o Chevrolet Impala 1963.
Chegar com ele brilhando no evento de lançamento do Ford Taurus,
em um hotel de São Paulo, causaria boa impressão. No caminho,
pelo rádio AM original do carro, eu acompanhava a largada
do Grande Prêmio de Fórmula 1 daquele dia, no Circuito de
Ímola, na Itália. Ayrton Senna, para variar, liderava, mas
algo estranho estava no ar. Eu nunca fui de ter premonições
ou coisa parecida, mas quando o locutor apenas mencionou um
acidente, na hora veio a imagem: foi o Ayrton. E foi grave.
Infelizmente pude confirmar a previsão chegando ao evento
da Ford, onde todos acompanhavam pela televisão, aflitos,
o trágico acontecimento cujo desfecho todos conhecem. Cinco
anos depois, Ayrton Senna, que concretizou o sonho de milhares
de jovens, foi eleito o Piloto do Século.
Na minha adolescência, a
maioria de meus amigos sonhava em ser um grande piloto de
automóveis, ao mesmo tempo em que não entendiam por que eu
não seguia por esse caminho, apesar das facilidades que sempre
tive. É que sempre achei que um piloto de verdade deveria
ter extrema determinação, assim como nosso Ayrton, característica
que definitivamente eu não possuía. Não como piloto. Mesmo
participando de muitas corridas de automóveis, o que, admito,
só acontecia devido às facilidades que eu tinha, e não porque
me esforçasse para isso. Mas não posso me esquecer do sucesso
da categoria paulista Turismo 5000, onde participavam Ford
Mavericks, Dodge Darts e até Landaus, todos com motor V-8
com mais de 5 000 cm3 de cilindrada. Com provas disputadas
apenas pelo anel externo de Interlagos, a categoria pegou
prá valer porque bastava ter um desses carros, devidamente
equipados com santo-antônio e cinto de segurança, para fazer
parte de um grid que chegava aos 70 carros. No início da categoria,
em 1980, quase não havia preparação e era muito barato participar.
O meu carro, um Maverick GT 1974 vermelho, desde novo na família,
contava apenas com uma boa suspensão e pneus radiais. Os motores,
também originais, às vezes eram comprados diretamente em desmanches.
Com essa receita, modéstia à parte, eu estava sempre entre
os cinco primeiros no grid de largada. Na verdade todos nós
corríamos pela segunda colocação, já que o Ney Faustini, o
único que tinha cavalos de sobra sob o capô de seu Maverick
branco, era freguês de carteirinha do alto do pódio.
Naquela tarde de domingo de outubro de 1981, eu estava diferente.
No treino classificatório, fiquei com o segundo tempo, na
frente de mais de 60 carros. Atrás de Ney, é claro. Antes
da largada, eu vejo um grupo de pilotos da categoria "enchendo
o tanque" de cerveja, que valeu a brincadeira: "então é assim
que vocês fazem tempo, hein?". Mas na corrida, bastaram duas
ou três voltas para eu achar que poderia encostar no líder.
Chão eu tinha, e quase que podia fazer a Curva 1 e a Curva
2 de pé em baixo. Mas não tinha motor. Até que eu vejo o Maverick
branco à minha frente, e eu chegando perto. Entusiasmado,
e deixando a prudência um pouco de lado, comecei a forçar
a barra até encostar no líder. Doce ilusão: uma leve desgarrada
na Curva 3 me fez perder a aderência. E o pior: com o carro
atravessado no meio da curva, sem querer funcionar novamente,
aqueles mais de 60 carros passavam por mim a 200 km/h, desviando
ora de um lado, ora de outro. Até que um deles, lá do pelotão
do fundo, me acertou em cheio na porta esquerda. O estrondo
foi ouvido até nas arquibancadas. Depois de rodopiar umas
duas vezes, o carro parou no meio da pista, quase dividido
em dois. Antes que eu pudesse sair de dentro do carro, o povo
que chega antes quase que me enterra: "esse aqui morreu, vamos
ver o outro!". Mas foram apenas escoriações causadas pelos
vidros quebrados. Santo santo-antônio! Santo cinto de segurança!
Foi só aí que que eu fui ver quem me bateu: o mesmo que enchia
a cara de cerveja antes da largada. Ele simplesmente não me
viu, atravessado no fim do retão. Seu carro também não sobrou
nada, foi parar na favela. Mas a corrida continuou. E eu descobri,
indo a pé para os boxes, que Interlagos é muito grande. Não
foi minha última corrida, mas com certeza foi a última do
belo Maverick da família. É, não basta ter o equipamento e
a oportunidade. Um piloto de competição não é nada se não
tiver garra e força de vontade. E nesse ponto nosso Ayrton
foi o grande exemplo do século.
Publicado na Revista CARRO
número 68, junho de 1999, página 66
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