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Todos os Cheiros e
os Sons
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Além de minhas atividades como jornalista e engenheiro,
nas horas vagas (horas vagas?) desenvolvo um projeto secreto,
há uns 40 anos, de uma máquina do tempo. Pronto, não é mais
secreto. Já que soltei a língua, vou explicar o princípio
da máquina que me leva a outras épocas, principalmente à dos
primórdios da indústria automobilística nacional.
Muito pequeno, ainda, via sempre com entusiasmo
meu pai entrar pela garagem com um carro novo. Corria para
lá e entrava no carro, que podia ser um Gordini, um Simca
ou um DKW, só para sentir o cheiro do seu interior. Mas tinha
que ser muito novo: é que o "cheirinho de carro novo", naquela
época, era diferente do cheiro dos carros atuais. Não havia
tanto plástico, o painel era pintado na cor do carro, e isso
resultava em um aroma muito caracte-rístico. Hoje é só sentir
um cheiro parecido para que a máquina do tempo me leve diretamente
para os anos 60.
Mas os cheiros não são apenas de interiores. A
gasolina tinha aroma diferente e o óleo de rícino no tanque
de um kart ou moto dois tempos leva ao tempo em que os DKW
ainda rodavam por aí, sem remorso por estar poluindo o ar.
Só não era aconselhável dirigir atrás de um deles.
Além dos cheiros, alguns sons também marcaram
os anos 60 e 70. O incrível ronco dos motores V8, característico
dos Simca, ficou para sempre. Dos mais antigos, então, melhor,
pois tinham válvulas laterais, que encorpavam ainda mais o
rondo de um par de escapamentos diretos. Não que um V8 de
32 válvulas, como o do BMW M5 desta edição, não emocione até
o fundo da alma, mas é que naquela época os sons eram mais
puros. Como o das primeiras motos de quatro cilindros de 1969,
com um quatro-em-um: nem Fórmula 1 tem aquele tom. É pura
música.
Bem, novamente a máquina do tempo está agindo:
lembro que eu podia identificar qualquer automóvel nacional
apenas pelo ronco do escapamento. Qualquer um. O mais fácil
era o DKW: o motor de dois tempos tinha ronco inconfundível.
Mas havia o Fusca (covardia), o Aero-Willys e o Gordini, com
seu som característico. No fim da década, somaram-se o sofisticado
Ford Galaxie, que quase não emitia ruído, o Dodge Dart e o
Ford Maverick, todos V8. E mais: o Chevrolet Opala e o pequeno
Ford Corcel, este último com ronco parecido com o do
Gordini. Pensando bem, eram poucos carros e de fácil identificação.
Parti, então, para o requinte na arte de identificar carros
com os olhos vendados: pela batida das portas. Pode parecer
incrível, mas era possível descobrir qual era o carro que
estacionava na porta de casa: bastava prestar atenção na hora
em que o sujeito fechava a porta. Não errava uma! Hoje isso
parece ser impossível. Os modelos atuais, mesmo os menores,
quase não fazem barulho. Os mais sofisticados, principalmente
importados, quase nada. Dia desses eu dava partida em um Ford
Taurus sem perceber que o motor já estava funcionando. Com
vidros fechados, ar-condicionado ligado e som em bom volume,
qualquer carro se transforma em uma ilha de privacidade, beirando
o perigo: não se ouvem as buzinas nem os assaltantes na janela.
É por isso que, às vezes, como no caso do M5, eu desligo som
e ar, abro a janela e estico as marchas como louco. Só para
lembrar de quando o que se ouvia emocionava pra valer.
Publicado na Revista CARRO
número 73, novembro de 1999, página 18
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